quinta-feira, 21 de julho de 2011

Incluir ou não incluir, eis a questão

Artigo de Marcos Lima sobre sua experiência em escolas especiais e regulares

Marcos Lima
Há alguns dias um programa de televisão estava debatendo a inclusão das pessoas com deficiência nas escolas normais, ou seja, aquelas que não são adaptadas às suas necessidades de aprendizado. Isso permite que as crianças com deficiência conheçam e convivam com crianças sem deficiência, uma troca de experiências que pode ser muito boa para ambos os grupos. O programa só trazia mães de meninos e meninas com problemas mentais (alguns dos quais eu nunca ouvi falar), de modo que eu não vou entrar especificamente nesse mérito. Como o nosso papo aqui é deficiência visual, vou dar a minha opinião sobre o assunto no que tange a este segmento específico. Antes, vale deixar claro que não sou pedagogo, nunca estudei esta questão pelo viés das teorias de educadores; eu quero simplesmente compartilhar alguns pensamentos frutos todos da minha experiência como pessoa com deficiência visual.
Antes de tudo, vale explicar a minha história, resumidamente. Nasci com glaucoma congênito, detectado quando eu tinha alguns meses de idade. Não obstante ao esforço da minha família e às dezesseis cirurgias realizadas, com 5 anos eu perdi completamente a visão. Nesta época, já estudava no Instituto Benjamin Constant, escola especial voltada para o ensino de alunos cegos e de baixa visão. Ali permaneci até os meus 16 anos, quando completei a oitava série. Depois, prestei concurso para o Colégio Pedro II, onde estudei os três anos do ensino médio (ou segundo grau), até que, passando no vestibular de jornalismo, ingressei na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Tudo isso para dizer que eu sou um grande entusiasta da escola especial. Para mim, ela foi fundamental no meu crescimento como pessoa e como profissional. Conviver com amigos que tinham deficiência visual me ensinou muito. Se eles podiam amarrar o tênis sozinho, eu também podia; se eles, moradores inclusive de municípios da Baixada Fluminense, podiam voltar sozinhos pra casa, eu, que morava há menos de um quilômetro da instituição, também podia; se eles podiam jogar bola, por que eu também não podia? E foi assim que, mesmo sem saberem, os meus amigos, colegas e conhecidos me ensinaram muita coisa. Ali eu não era o cego, mas apenas mais um cego, de quem ninguém passaria a mão na cabeça por conta disso, já que existiam centenas de outros com as mesmas características.
Fico pensando que, se o tempo todo tivesse estudado em uma escola comum, onde eu era o único deficiente visual, eu teria perdido uma chance de me desenvolver. Afinal, em meio a tantas crianças que enxergam, eu sempre seria o "ceguinho". E, sem exemplos nos quais me espelhar, talvez hoje eu fosse uma pessoa bem mais limitada. Se posteriormente na minha vida pude conviver com outras pessoas com deficiência sem que eu fosse apenas o "ceguinho" do grupo, foi porque, enquanto estava na escola especial, tive as bases e a confiança necessárias para me posicionar na sociedade, com meus defeitos e qualidades, com minhas virtudes e deficiências (que infelizmente vão muito além da visual). Claro que devem existir pessoas que estudaram em escola normal o tempo todo, que nunca conheceram nenhum outro deficiente visual e que são mais safas e mais independentes do que eu, de modo que volto a frisar que essa é apenas uma opinião muito parcial sobre uma história específica: a minha.
Se não fosse essa convivência, eu não teria aprendido a jogar futebol (e como seria a minha vida sem uma bola de guizo?) e, sem ingressar no esporte, eu não teria disputado tantos campeonatos e viajado três vezes para fora do Brasil por conta deles... Exagero? Pensem pois: como eu poderia jogar futebol em igualdade de condições se eu fosse o único cego do meu estabelecimento de ensino? Sem conhecer outros cegos, como eu poderia saber que se formavam equipes de futebol de 5 e que se disputavam campeonatos nacionais e internacionais? E, se não fosse assim, eu não teria visto o quanto o paradesporto precisa de apoio, o quanto o esporte muda a vida das pessoas e o quanto a gente pode fazer mais por isso. E, se não fosse tudo isso, hoje seguramente a Urece não existiria, mesmo porque o Anderson, o Gabriel, o Filippe, o Fábio, o Rafael, todos eles também não teriam sido parte da minha história e da história da Urece.
Se não fosse a convivência diária com meus amigos com deficiência visual, eu não teria aprendido que para tudo se dá um jeito e que a maior deficiência é a sua capacidade de se auto-limitar. Não teria aprendido que se pode colocar uma bola dentro de um saco plástico e jogar futebol guiados pelo barulho que ela produz em contato com o piso ou, na ausência de uma esférica de verdade, nunca teria pensado que basta uma garrafinha plástica qualquer cheia de pedrinhas para garantir a diversão de uma tarde inteira.
Se não fosse a convivência com meus amigos deficientes visuais, eu provavelmente teria me limitado a fazer o que as pessoas achavam que um cego podia fazer. "Eu não ando sozinho porque sou cego, os outros andam porque eles enxergam". "Eu não posso tirar notas boas porque eu não enxergo e então é difícil pra mim aprender matemática; os outros enxergam e então eles vão bem". E, embora estejamos apenas em um exercício de adivinhação, provavelmente não seria o que eu sou hoje.
Apesar de eu destacar a importância da escola adaptada (ou especial ou seja lá qual for o nome correto para isso, embora esse troço de dar nomes politicamente corretos seja um pé no saco), acho que chega um momento em que é necessário dar um vôo maior. E esse momento chegou, para mim, justamente ao final do primeiro grau. OK, já tinha vivido e crescido com meus amigos que também têm deficiência visual, já tinha apreendido os limites e principalmente as potencialidades da minha deficiência, de modo que chegara o tempo de quebrar os elos com o mundinho feito para você e se inserir na vida real. Não, o mundo não é feito de colegas e professores que têm a mesma deficiência que você, livros em braille, corredores adaptados... Pelo contrário, essa é apenas uma pequenina exceção. O mundo real é construído por uma maciça parede de preconceito, de injustiça, de falta de acessibilidade, mas tampouco adianta espernear contra isso, porque é nele que você vive. Então é necessário aceitar isso e buscar o seu lugar nele, por mais que pareça mais confortável continuar sempre agarrado ao maternal colégio onde tudo é feito para atender as suas necessidades.
E, com meus 16 anos, entrando em uma escola normal, cercado de colegas que não apenas não eram deficientes como também nunca tinham visto um cego na vida, comecei a aprender que existe muito mais no mundo e em mim mesmo. Não tardei a descobrir na prática que sou muito mais que um cego, que podia sair na mão com meus amigos apenas por brincadeira e ganhar ou perder como qualquer outro... Aprendi que por mais difícil que fosse a matemática ou a física, sempre se podia dar um jeitinho para entender um gráfico, porque se eu tinha sido capaz de fazer antes quando meus companheiros de turma tinham deficiência visual, por que eu não conseguiria agora também? Aprendi que existem coisas socialmente aceitas e que outras não o são e que, ao contrário de você, as outras pessoas enxergam. E por isso que esses anos foram fundamentais para o meu crescimento como pessoa e como profissional.
"Ué, eu já li isso antes", você deve estar pensando. E já leu mesmo, no início do texto, referindo-se exatamente à escola adaptada. E isso resume bem o que eu penso sobre o assunto: há hora pra tudo. Escola adaptada é fundamental para você crescer com outras pessoas que têm a sua mesma deficiência e aprender, com elas, a exigir-se ao máximo para se tornar o mais independente e autônomo possível. E existe também o momento de entrar no mundo real, em que nem sempre terão compaixão ou compreensão da sua deficiência, pois, na verdade, é nesse mundo que nós vivemos assim mesmo, com suas injustiças e idiossincrasias, mas só é possível mudá-lo estando dentro dele.



Fonte: Urece
21/07/2011

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