terça-feira, 2 de agosto de 2011

Anões, mídia e deficiência

Depoimento da jornalista anã Lelei Teixeira no Seminário Mídia&Deficiência Assembléia Legislativa do Estado do RS

Lelei Teixeira
Mídia & Deficiência
Boa tarde a todos.
Agradeço aos organizadores deste seminário a oportunidade de compartilhar com
vocês um pouco da minha experiência e algumas inquietações que cercam a vida de
pessoas que, como eu, têm uma deficiência. Estou saindo de uma gripe muito forte,
portanto, perdoem a voz e a respiração mal colocada.
Falar de uma questão que me diz respeito é um desafio, até porque sou mais dos
bastidores do que do palco. Como tratar de tema tão delicado, evitando cair na
vitimização, no paternalismo, no heroísmo, no fetiche, no clichê, no estereótipo?
Falar com serenidade das dificuldades do dia a dia – e elas existem! – encarar a
diferença, e a repercussão dessa diferença, no meio em que vivemos não é tarefa
fácil. Mas é tarefa necessária, imprescindível nesses tempos em que tanto se discursa
pela inclusão, acessibilidade, diferença, pluralidade.
A sociedade reserva um determinado lugar para aqueles que fogem aos padrões
de normalidade sobre os quais o mundo está estruturado. Ninguém se espanta, por
exemplo, ao ver o negro como porteiro, operário, empregada doméstica, porque este
é o espaço que lhe cabe. Assim como ninguém se admira ao ver o homossexual como
costureiro, cabeleireiro, fazendo o gênero pitoresco, irônico, de humor fino, ferino.
O anão divertindo as pessoas, dando cambalhotas, sendo alvo de chacota, ou como
figura mágica, também não espanta. É o que lhe cabe nesse latifúndio.
Partindo do universo dos bufões, desde a antiguidade os anões são pessoas marcadas
pelo estigma de garantir a diversão de outros, de fazer rir, expondo-se de qualquer
maneira. Vê-los assim, os bobos da corte, é perfeitamente natural. Vê-los responder
ao discurso já dado sobre eles não espanta ninguém. Chega a ser condição para que
sejam incluídos.
O espanto surge no momento em que rompem esses espaços. É aí que a diferença
grita, assume outras proporções e a sociedade se defronta com o que não quer
admitir: a rejeição, o preconceito. Já não está mais diante do estereótipo, do ser
mítico, quase distante e, sim, da pessoa real, de carne e osso, com sentimentos,
paixões, contradições e a sua DIFERENÇA. Diferença com a qual a sociedade não
sabe lidar.
É aí que o deficiente, seja por razões físicas ou mentais, instaura a desordem num
mundo aparentemente normal, desorganiza a frágil organização da sociedade. E as
pessoas se enfrentam com a dificuldade e a necessidade de lidar com uma realidade
que não querem ver: tratar o deficiente na exata medida do seu problema, com
naturalidade. Ao ignorar ou excluir as diferenças certamente toma-se o caminho mais
fácil e mais curto para a eliminação do humano, do caráter criativo e inusitado dos
homens, que está no encontro das suas múltiplas possibilidades e capacidades.
Cabe, portanto, a nós, com a nossa dificuldade, subverter a ordem, extrapolar
os espaços e recusar os papéis já dados, como o do bufão, o do “coitadinho”, da
vítima ou o do herói. Se para a sociedade é difícil conviver com a diferença, é
fundamental fazê-la entender o valor e as possibilidades que as diferenças trazem.
Resta-nos aprender juntos, fora dos estereótipos e dos discursos já instituídos, velhos
e redutores.
Além do acesso físico, sem dúvida fundamental, a pessoa com uma deficiência
precisa ser acolhida com a sua dificuldade, sem disfarces e pré-julgamentos;
na sua dimensão real, sem contaminações, sem transformar-se em exemplo. Só
assim construiremos relações mais humanas, definitivas para a eliminação do
preconceito. “Ver com os olhos livres”, como disse o escritor Oswald de Andrade no
Manifesto Antropofágico nos anos 20 do século 20.
Se é impossível adaptar a cidade às nossas necessidades, é perfeitamente viável
contar com a boa vontade das pessoas. No caso dos anões, por exemplo, ser atendidos
fora dos imensos balcões dos bancos, já será um avanço.
A mídia tem um papel fundamental neste sentido: mostrar a vida como ela é tratar
de questões que envolvem a deficiência e o preconceito com naturalidade. É
formadora de opinião, por isso tem uma enorme responsabilidade. Não pode ser
linear e burocrata em suas análises e comentários. É importante que instigue, faça
pensar, evitando o sensacionalismo, que não contribui em nada para causa nenhuma.
Precisamos de mais civilidade, mais grandeza, mais humanidade e mais sabedoria ao
tratar de temas delicados como esse.
Nós, os anões, somos poucos e pouco lembrados, quase invisíveis para a sociedade
e os governos. Mas temos belos exemplos de reportagens sobre o nanismo. Desde
os anos 80, procuro acompanhar o assunto na mídia. Nessa época, uma matéria de
página inteira no jornal O Estado de São Paulo, com um título muito sintomático e
sensível – “A solidão desta gente pequena” – chamou muito a minha atenção. Talvez
aí eu tenha mergulhado definitivamente na minha condição. Há mais de 35 anos,
a reportagem era pontual e trazia vários depoimentos de anões. Na verdade, trazia
todas as questões que discutimos hoje, depois que inclusão e acessibilidade tornaram-
se palavras da moda, politicamente corretas. Mais recentemente, em novembro de
2009, a reportagem feita pela jornalista Fernanda Zaffari para o Caderno Donna de
Zero Hora, na qual minha irmã e eu fomos entrevistas, foi de uma delicadeza rara,
absolutamente fora dos estereótipos. Tratou do problema com naturalidade e nos
mostrou como pessoas que vivem como qualquer outra. A repercussão dessa matéira
ainda hoje nos surpreende.
Mas temos também péssimos exemplos de tratamento aos anões na mídia,
especialmente em programas de televisão e rádio. Por uma dessas falhas de memória
que Freud deve explicar, esqueci as datas, mas vale registrar. Comunicadores de
programas como Manhattan Connection/GNT e Pretinho Básico/Rádio Atlântida
fizeram comentários absolutamente infelizes e preconceituosos sobre os anões. Só
viram o estereótipo, sem nenhum contraponto. Pelo discurso deles, quase nazista,
não é delegado ao anão um comportamento humano. Como todo comunicador, que
precisa ser interessante e preencher um espaço sem pensar e sem questionamentos,
eles ironizaram grosseiramente a condição de vida dos anões, absolutamente presos
ao estigma, demonstrando farta ignorância sobre a diferença e a deficiência.
Para encerrar, lembro duas frases de canções de Caetano Veloso, que podem
funcionar como uma bússula nessa nossa jornada: “Cada um sabe a dor e a delícia de
ser o que é” e “De perto ninguém é normal”.
Não somos nem vítimas nem heróis. Estamos na vida como qualquer pessoa, com a
nossa dificuldade.


Lelei Teixeira
Jornalista
Fonte: Seminário Mídia&Deficiência
Assembléia Legislativa do Estado do RS
Porto Alegre, 27 de julho de 2011

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