terça-feira, 19 de julho de 2011

Pucca: Vítima de cegueira moral

A história da cadela-guia Pucca e de sua dona, Camila, barradas num restaurante do Rio

Nelito Fernandes
DISCRIMINADA
Pucca posa para a foto. Ela guia a dona por toda parte, mas não entra em
"Espelunca Chique". A fêmea de golden retriever. Pucca largou a vida das passarelas por uma nobre missão. A cadela de 2 anos e meio trocou o glamour dos concursos de beleza de cÃes por uma vida (quase) anônima em Niterói, no Rio de Janeiro, como guia de cegos. Todos os dias, Pucca sai de casa pela manhã e conduz sua dona, a estudante Camila Araújo Alves, de 21 anos, numa caminhada de 15 minutos até a barca que faz a ligação com o Rio. Na plataforma de embarque, Pucca aguarda pacientemente. Quando a embarcação chega, elas entram. Atravessam a Baía
de Guanabara, descem da barca e caminham pelo centro da cidade até o trabalho de Camila. Ela é estagiária de arte no Centro Cultural do Banco do Brasil. A cadela sabe todos os destinos da dona, inclusive onde ficam os pontos de ônibus. Aonde quer que vá, Pucca, invariavelmente, recebe elogios e provoca comentários carinhosos. Mas, no sábado 9, ela aprendeu que o homem nem sempre é o melhor amigo do cÃo: foi barrada num restaurante.
A cadela golden não pôde entrar no Espelunca Chique, em Copacabana, onde Camila pretendia jantar com amigas. Logo na entrada, um garçom abordou o grupo e disse que cães eram proibidos. Camila, acostumada a situações como aquela, mostrou uma cópia da Lei Federal número 1.124, de 2005, que traz consigo o tempo inteiro. A lei garante acesso irrestrito a cÃes acompanhantes de deficientes visuais a qualquer lugar. As únicas exceções sÃo UTIs de hospitais e locais de preparo de comida dos doentes. Não adiantou. Camila chamou a Polícia Militar, mas os guardas, por assim dizer, fizeram vista grossa. Disseram que não podiam fazer nada, mesmo
diante de uma flagrante ilegalidade. É incrível como a polícia brasileira, tão vigorosa na repressÃo a certos crimes, se omite na hora de ajudar cidadãos a fazer cumprir a lei em situações cotidianas. "É muito grave o policial não fazer cumprir a lei, porque a polícia serve para isso", afirma o deputado Marcelo Freixo, do PSOL, presidente da Comissão de Direitos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. "Deviam ter levado todos para a delegacia e ter feito o registro de ocorrência, no mínimo".
Revoltadas mas impotentes, a estudante e suas amigas deixaram o restaurante e usaram o último recurso dos brasileiros indignados: denunciaram a
violação à lei no Facebook. A reação foi instantânea, o clamor cresceu na internet e, nos dias seguintes, a história chegou aos jornais. O dono do Espelunca, Roberto Zaccaro, disse que lamenta o episódio e culpou o gerente. "Infelizmente, ele não me ligou para buscar orientação", afirmou. "Em nossa outra filial temos uma cliente que sempre vai com o cão-guia e nunca teve problema." Camila vai processar o restaurante por danos morais. Ela ficou cega aos 15 anos, vítima de retinose pigmentar, uma doença genética que provoca a degeneração da retina. Antes da chegada de Pucca, só saía de casa diante do inadiável. Hoje, oito meses depois de receber a cadela, doada pela ONG CÃo-Guia Brasil, Camila até corre na praia, acompanhada por sua guia. "Ela me deu vida nova. Ganhei independência de novo", afirma Camila. "No restaurante eu me senti muito desrespeitada e resolvi protestar. Espero que isso tenha uma visão pedagógica." Antes da lei, os deficientes visuais tinham de recorrer a ações individuais. Em 2004, a advogada paulistana Thays Martinez conseguiu na Justiça o direito de entrar no metrô de
SÃo Paulo com seu labrador-guia Bóris. Thays foi impedida de viajar na
estação Marechal Deodoro do metrô em 2000, e o processo durou quatro anos. Bóris foi o primeiro cão do país a ter acesso garantido ao metrô por decisão judicial.
"Me senti desrespeitada e protestei. Espero que seja pedagógico" Camila Araújo Alves, estudante e cega.

LEI DA SELVA
Algumas pessoas não acreditam que a lei dê trânsito livre ao cão-guia. Treinador de Pucca, George Thomaz Harrison, diretor da ONG, garante que os cachorros não provocam nenhum tipo de constrangimento. Eles não latem, só fazem necessidades fisiológicas nos horários programados e jamais atacam. Tanto preparo leva tempo: são dois anos de treinamento intensivo. Após esse período, passam por revisões constantemente. A maioria desses cães é doada por ONGs como a Cão-Guia. Nos Estados Unidos, um cão como esse chega a custar US$ 50 mil. No Brasil, faltam animais. A fila de espera, aqui, é de 12 mil deficientes visuais. Somente cinco cães são entregues por ano pelas instituições, todas privadas, que vivem de doações.
Para ser cão-guia, o animal precisa ter uma aptidão específica, detectada
já aos 3 meses de idade. Pucca é uma exceção. Ela era uma cadela de exposiçÃo, mas o temperamento afetuoso e a obediência a levaram à nova função. Foi doada pelo seu antigo proprietário para a ONG, que a treinou. "A Pucca nasceu pronta para isso", diz George. Cães-guia para deficientes visuais nÃo podem ser medrosos nem corajosos demais. Tampouco podem se distrair. Obedecem ao comando de voz dos donos e decoram os caminhos. Ele e o deficiente precisam ter temperamento parecido. No caso de Pucca e Camila, o casamento é perfeito. "Ela é minha companheira, minha amiga. Somos nós duas para tudo", diz Camila.
Apesar de ter sido promulgada em 2005, a lei de livre acesso aos cães-guia
é pouco conhecida. Segundo Camila, muitos restaurantes alegam que o cachorro não tem entrada assegurada em lugares de lazer, o que nÃo é verdade. "Mostro a cópia da lei, mas alguns não acreditam", diz ela. Toda vez que há um impasse na hora da entrada, Pucca faz o que fez no último sábado. Enquanto a discussão corria solta na porta do restaurante, ela deitou e tirou uma soneca. Certamente entediada com a intransigência dos bípedes.


Fonte: Revista Época
http://revistaepoca.globo.com/, 19/07/2011

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